Download – EP “Motivo”

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Lançado em agosto de 2015, “Motivo” é uma expressão do alter ego do artista Dom Quixote, que é uma tentativa de falar sobre sua vida com poesia e experimentalismo musical. Como as experiências más e boas da vida, o intuito de sua música é transformar a si mesmo e quem o ouve a cada nota e palavra composta.

“Motivo”, palavra que tem duplo significado, o do conceito musical, que significa um pequeno elemento característico de uma composição musical, que garante de várias maneiras a unidade de uma obra ou de um trecho de uma obra, bem como o literal, aquilo que move, que justifica o modo como vivemos, o que fazemos, do que gostamos e por que gostamos. “Todos nós temos um “Motivo”. Muito mais do que tentar explicar ou alcançar alguma resposta, este EP vai além e se foca apenas nas experiências, no cotidiano, no agora.” Completa.

Por fim, sua sonoridade vai desde o folk clássico, com violão, cello, voz e coral, flertando também com a música eletrônica, misturando samplers, teclados e sintetizadores com instrumentos de corda. Não há pudor nos arranjos, cada elemento está presente pela sua necessidade, e não pela tentativa de assemelhar-se a qualquer estilo pré-definido, filiar-se a alguma vanguarda. Suas influências vão desde Cícero, Esteban, Valentin, Devendra Banhart, a até compositores mais clássicos como Caetano Veloso e Milton Nascimento.

Cartas aos Desesperados

I – Desconforto

Há um desconforto no ar

Um sorriso, uma foice e uma flor

Tenho dado muito espaço a sua ausência

Tenho sufocado minha própria presença

O cheiro do corpo morto impregnou suas palavras

O sacrifício, o vacilo e tua condescendência deplorável

Eles saltam os olhos, e tu vens e me diz “Eu só quis ajudar”

Ver-te desesperado, suplicando piedade me faz pensar

Tu não passas de uma barata, pois só andas por esgotos

Beijando porcos, lambendo ossos, dizendo “não” aos vossos

 

II – Fracasso

Em frente ao grande exercito de fracassados

Só, em meio a chamas, cinzas, pecados e cigarros

“Flamejando!”, dizem eles, enquanto gritam e apontam

“Expurgando”, digo eu, enquanto a pele descasca e apodrece

Estive pensando sobre os versos, sobre os desertos, sobre os excessos

Estive olhando suas depravações, dissimulações e desejos

Meu corpo é apenas instrumento de reflexo, um mero espelho

Se te ofende olhar-me nu, doente, balbuciando e vacilando

É porque no fundo estás nu, doente, balbuciando e vacilando

Se te envergonhas ao ver-me gritando, dizendo veementemente “Sim!”

É por que querias estar aqui, afirmando também sua desgraça

Dizendo “sim” aos pecados, a embriaguez e sorrindo aos mortos.

 

III – Inveja

Ah! Como queria teu luxo, tuas mulheres, teu dinheiro

Meu Deus! Como pedi por tua voz, tuas roupas, teu cabelo

Queria arrancar tua face, roubá-la, colá-la em um quadro

Ver teu sangue exposto em minhas paredes

Pintar minha casa, todos os móveis, pra que em cada um deles

More um pouco de ti.

Não é que quero ver-te sofre.

Eu quero ser o seu sofrimento

Quero sentir como você sofre, por dentro de ti.

Um personagem curioso, velho por fora, criança por dentro

És um profeta dos imbecís, dos fracos, das vagabundas, dos mal amados

És inspiração para os gênios, os engenhosos, os homens de ação

E veja, como eles tem vergonha de dizer que te adoram!

No entanto, não saem de sua volta, ficam rodopiando quando você chega

Oh, grande rei dos imbecís! Suplico a ti: torne-me também um imbecíl

Uma vida pensada não vale a pena.

 

IV – Faz um tempo.

Faz um tempo que te amo, faz um tempo que espero por você

Mas toda vez que você chega, penso que não era com você que queria conversar

Já até estive em seus lábios, mas não em sua mente

Não quero teu corpo, quero tuas palavras

Quero ver-te perdendo tempo comigo!

Mas comigo tu não perde tempo, apenas investe, e espera lucrar

Percebi, há pouco, falando em tempo: já não queres a ti mesma há muito tempo

E decidi: não se ama quem não ama a si mesmo.

A toda espécie de mendigo já dedicou seu tempo

Talvez sejas uma verdadeira Ave Maria!

Provavelmente eu seja muito mal e sua bondade me cega

Seja incompressível, inadmissível, para mim

Ser uma mera passagem, ser mais um devoto seu

Mais um que para em sua fila e pede por um pão.

Talvez eu quisesse ser Deus, pra te castigar

Impor-lhe minhas vontades, minha doutrina

Castrar todos os teus desejos e te deixar muda, sem ventre!

Mas ah…deixe, deixe estar.

Pressinto que os ventos não estão a seu favor

Pressinto um temporal de magoas em tua direção

Vejo um mar de pragas em sua lavoura, em suas plantações

Tudo porque não cuida de si mesma, tudo porque já foi embora de ti!

E pensando bem, se não te quero bem, se quero lhe ver sofrer

Já não te amo.

 

V – Desculpas

Existem poucos pedidos que me ofendem

Gosto de ajudar, gosto de ser atencioso

Sentir que faço parte de uma luta

Sentir meu sangue fervendo por um inimigo que não é meu.

Alimento-me da empatia regularmente.

Ultimamente, porém, ando me sentindo seco

Eu diria até, perverso, febril

Não posso mais ajudar, não posso mais ouvir

Talvez porque tenha me ocorrido, de solavanco

O pensamento negro de que o inimigo seja muito mais amigo

E que o sofrer seja educativo, seja a chama que dá cor ao conhecimento

E que talvez me retirar de campo, por me de lado e fechar os olhos aos suplícios

Seja a maior bondade que eu possa oferecer aos outros

Sinto-me pleno, não sinto culpa por virar as costas aos queridos

Ou vocês se viram ou talvez gostem de sofrer, gostem de contar suas mentiras

“Ai, ele me machucou, ele me chamou até lá apenas pra me ver cair, pra me usar!”

É mais uma história pra contar, um drama pra encenar, uma desculpa pra subir ao palco

Só sei que de minha parte, não quero fazer mais parte deste roteiro

Não quero dirigir estas cenas horríveis que vocês tanto romantizam

Retiro-me deste teatro, e não há justificativa ou desafeto que me faça voltar

Peça-me qualquer coisa, só não me peça pra encenar

Porque não há pedido que me ofenda mais

Do que aquele que pede pra sorrir há quem nunca soube chorar.

Teu amado Prometeu

Quando aprendo esse canto

Faço um novo eu

Quando faço esse encanto

Deixo o que doeu.

Dentro desse meu canto

Só este samba é teu.

Se hoje és musa

Amanhã nem tanto

Se hoje herói

Amanhã sou pranto.

Queima eu, queima tu

Queima quem correu.

O faltou, o doeu

Foi do crente teu.

Sou ateu, não sou teu:

Azar desse teu amado prometeu.

passado, presente e história

O passado é só uma história que contamos a nós mesmos. Dependendo de como nos relacionamos com o presente, contamos histórias que difamam e outras que glorificam ele. É como a sorte o azar: ambos são acontecimentos imprevistos que qualificamos posteriormente, dependendo da aceitação ou recusa desses acontecimentos. Por isso, penso que dentro de cada “sim” e “não” no presente, ou seja, uma simples afirmação ou recusa, existem milhares de histórias cheias de sorte a azar. A questão principal, a saber, é a de que todo acontecimento é uma oportunidade, e muitas vezes contamos histórias que nos cegam a respeito dessas oportunidades. Uma boa história não é necessariamente uma história feliz: você pode ter uma história trágica que torne o seu presente digno de ser vivido. Não existe uma formula: como todo acontecimento varia, toda história tem de variar também. O importante a se frisar, é que a historia, seja ela trágica ou gloriosa, tem de nos atentar as oportunidades presentes no agora. É como uma lente: a maneira com que contamos a história é o grau, podendo se ajustar ou não ao acontecimento. Por isso, creio eu, seja fundamental para viver e se ajustar a cada situação estar sempre recriando o passado, recriando a história, sem uma ordem determinada. Cada acontecimento é diferente, e dentro de cada acontecimento reside uma oportunidade, e a única maneira de visualizar esta oportunidade é ajustar o olhar, em seu devido lugar e clareza, é preciso sempre de uma história que seja justa com nós mesmos, ou seja, que nos faça viver, e não nos aprisione no passado.

Não falo aqui de pessimismo ou otimismo, falo sobre movimento, simples e puramente. Pensar é o mesmo que se relacionar, e toda relação implica em ação, ou seja, movimento. Mesmo o silêncio e a recusa são movimentos, por que são formas de se relacionar com acontecimentos. Entendo a vida como uma estrada tortuosa, ela tem caminhos diferentes para cada pessoa, tem milhares de bifurcações e buracos que precisam ser desviados. É preciso estar sempre prestando atenção na estrada, nunca na chegada ou na partida, ajustar as coordenada em cada movimento. O movimento pode se ajustar ou não, dependendo da clareza com que enxergamos as curvas. A clareza depende da lente que usamos. E o que é a lente? É a história que contamos. E o que é a história que contamos? A interpretação do passado. E o que é o passado? Um emaranhado de experiências que vivemos. A experiência é a matéria prima da interpretação. Gosto de pensar no interprete como um artesão, que lida com diferentes tipos de madeiras, diferentes medidas, e dependo da forma que ele quer dar, do objeto que ele quer produzir, ele utiliza um tipo de madeira, faz ajustes aqui e ali, corta, lixa, etc. Ele não tem pena da madeira, porque sabe que seu motivo é nobre, afinal, ele está a produzir algo novo, reinventar, a ser criativo. É assim que se deve lidar com o passado; é melhor não ter pena dele, é necessário frieza, rigidez e precisão na interpretação, porque é nossa vida que está em jogo, é a curva fechada na estrada, é o pão que comemos amanhã, é a nossa tristeza e alegria. Avalie o passado, não seja avaliado por ele. Não se trata de uma questão de escolha, se trata do que é necessário: se não quiser ser senhor do seu próprio passado, então será escravo. 

O que é que eu sou ?

O que é que eu sou ? Sou a terra que meu pai cultivou
O que é que eu sou ? Sou os dias que minha mãe abandonou
O que é que eu sou ? Sou o teto que meu pai levantou
O que é que eu sou ? Sou o leite dos seios fartos de quem muito amou
O que é que eu sou ? Sou a cor e o pecado de quem desbravou o sol e a estrada até se encontrar
O que é que eu sou ? Sou as feridas do pai dizimado; a mão queimada, o braço rasgado, o suor desgraçado e a perna cicatrizada do trabalho explorado.
O que é que eu sou ? Sou a saúde pública e gratuita, a distância trilhada na caminhada pela terra vermelha até o posto pra curar o pulmão asmático, a dor nos ossos frágeis e a vista cansada.
O que é que eu sou ? Sou a aguardente daquelas noites frias, em que o trabalho e o cansaço consomem a consciência de um pai que só queria as contas pagar.
O que é que eu sou ? Sou os talheres, a louça, o sal, a carne, o arroz e o feijão, a compressa, a reza e a fé da profissão não-reconhecida, de uma vida esquecida e suprimida, inda que fortalecida por uma mãe decidida a cuidar.
O que é que eu sou ? Sou a prestação do computador, o absurdo em valor, de um irmão que com labor e ardor, estendeu a mão e o amor pra fornecer conhecimento, reconhecimento e o fortalecimento que permitam pensar e cantar com vigor.
O que é que eu sou ? Sou o esforço diário das seis as oito para o filho educar, o tempo gasto na esperança do futuro amenizar, pra um dia poder ver quem sabe alguém trabalhar pra viver, não viver pra trabalhar.
O que é que eu sou ? Sou o produto do trabalho e do tempo de alguém que se desgastou, a concretização em forma de consciência de uma história que ninguém contou.
O que é que eu sou ? Sou o amor em forma de trabalho que agora cresceu e lembrou:

“Trabalhando o sal é amor, é o suor que me sai
Vou viver cantando o dia tão quente que faz
Homem ver criança buscando conchinhas no mar
Trabalho o dia inteiro pra vida de gente levar

Água vira sal lá na salina
Quem diminuiu água do mar
Água enfrenta sol lá na salina
Sol que vai queimando até queimar

Trabalhando o sal pra ver a mulher se vestir
E ao chegar em casa encontrar a família sorrir
Filho vir da escola, problema maior é o de estudar
Que é pra não ter meu trabalho e vida de gente levar”
(Milton Nascimento – Canção do Sal)
https://www.youtube.com/watch?v=nBYBlF0kgXo

Adeus, Helena, reaprendi a rir sozinho

Adeus, Helena, reaprendi a rir sozinho, como a muito tempo atrás, antes de nos conhecermos.
Adeus, Helena, atirei ao inferno todas as consolações metafísicas que justificavam nosso retorno ao romantismo – e até, para começar, dei ao diabo o “amor ao próximo”.
Sim, Helena, fui eu mesmo quem coloquei essa coroa de rosas em minha cabeça, não encontrei ninguém com força suficiente para colocá-la, e dou-vos ela a todos vocês, meus irmãos, esta mesma coroa.

Acalmem-se e desarmem-se para ouvir com atenção a história de um artista que foi devorado pela sua própria obra de arte, pois este servo desrespeitou Apolo, desrespeitando as regras da medida, da autognose e se aproximou dos titãs, dominado por uma vontade titânica de amar o próximo por não suportar a si mesmo. Vou explicar-lhes minha história e a história de Helena, minha criação:

Dizem que a vida só vale a pena se encontramos alguém para amar, algo belo para admirar; que a vida é feita para suportar e que o belo torna a dor aceitável, e que cabe ao homem manifestar a dádiva dos Deuses em suas criações. Fui em minha jornada então, caminhar solitário entre arbustos e estradas, procurar ferramentas e elementos para forjar minha obra de arte, e logo de passagem, encontrei um ente a vagar, tão perdido quanto eu. Pedi a ele para dizer seus mais íntimos segredos, suas mais intimas dores, e disse a ele minha verdade sobre suas dores. Em seguida, pedi para ele novamente dizer essas verdade para mim, e obtendo assim, minha verdade, criei Helena em cima deste espirito tortuoso. Fiz o desenho mais perfeito, fiz seus traços de tudo o que não aconteceu, as cores escolhi entre tantas tintas que inventei, misturei tudo com nossa promessa nunca feita. A tela toda era de lençóis que haveríamos de sujar, fiz pinceis com seus cabelos, carvão com seu batom e com ele marquei dois pontos de fuga, e finalmente, rabisquei meu horizonte¹.

Helena não era pessoa misteriosa nem espírito profano. Não se pode chamá-la de ordinária, tampouco talentosa. Não sabia muito, mas nada tinha de obtusa. Inclusive, queixava-se frequentemente por ser o que era, pois fora talhada por mim, e elevando-me a título de Zeus, dei-lhe a vocação de que fosse assunto de poema para os homens que haveriam de nascer. O tempo foi passando e já não era como antes, o que era pra ser belo virou tédio, rotina, não consegui amá-la da devida forma; não conseguia nem me fazer feliz, como faria Helena feliz? então separei-me de Helena. Subestimei a força de minha própria criação e esqueci que em toda dádiva reside o Hau; o espirito da coisa dada, onde ainda subsiste uma parte de mim. Sinto que quando me envolvi com ela foi como entrar numa Odisseia, e adivinha? Eu sou o Páris que morreu enquanto Helena continuava a se deitar na cama com outros homens. A dor continuou, até que comecei a questionar-me sobre quando e como fora dado o nascimento de minha tragédia.

Passou-se mais de um ano e meio que não estou com Helena, e outrora, antes disso tudo começar, eu tinha uma noção de criação muito mais livre, minha inspiração e o meu belo era muito mais volátil, mais vívido e muito mais sublime do que agora. Podia fechar os olhos, pedir aos sonhos para me possuírem, parar mediante qualquer paisagem da natureza e compor uma poema, uma música ou um belo discurso. Perdi tudo e não pude nem condenar, odiar ou acusar alguém, como o marido traído que mesmo após dez anos de tristeza, sofrimento e infelicidade não tem ânimo para matar a esposa, atordoado pela beleza de sua própria criação. Nossos dias de glórias embriagados, festejando e dançando contra a serenidade olímpica gritava o mais pleno êxtase Dionisíaco, onde nós eramos a nossa própria obra de arte. Entretanto, minha maior criação foi minha maior desgraça. Um artista não consegue se desapegar da arte que criou pois ela também criou ele.

Eu inventei a Helena pra suportar o tédio e a mediocridade que era a vida, eu recorri ao consolo da metafísica. Não falo da garota pela qual me apaixonei, falo de Helena, a invenção, a musa de todos os homens, que um dia esteve em seu corpo e que já foi embora agora. Sinceramente, agora que a dor se esvaiu, observando como ela fala e age, não acho que essa garota seja uma Musa, e aliás, acho que para o bem dela e o meu, nem deva sê-la, se o preço a pagar for a escravidão de nossos sentimentos. A propósito, sobre tudo o que lhes contei, sobre o ódio que tentei sentir em vão, sobre os dias em exílio que passei: descobri, por fim, que é algo mais sobre mim e não sobre Helena, está no impulso que a criou, nesse medo, algo que eu não quis enxergar e pedi para outro o fazer por mim, uma sensação de desespero que não fala sobre minha amada, mas sobre mim. Fico triste mais pela perda da minha criação Helênica do que por ela em si, entendem? Fico triste pelo véu de maia, que ocultava todas as ilusões, e que agora, caiu.

Devo agora abandonar essas ideias metafísicas de Musa, de perfeição e de verdade. Eu segui todos esses preceitos quando criei Helena . Agora eu quero apenas a tragédia, quero o desgaste, quero entender o saber de Apolo; o mundo do sofrimento é necessário para criar uma visão libertadora, quero aprender a contemplar a beleza, mesmo levado em minha frágil barca por entre as ondas do mar alto, me tornar calmo e cheio de serenidade em meio a perdição, não fora dela, não ao lado de Helena. Quero aceitar a dádiva em sua totalidade, não apenas em seu caráter generoso, mas em sua força impiedosa e rude também, sua obrigatoriedade.

Jovem demais pra esperar e velho demais para jogar tudo para alto e correr… Eu quero a tragédia, o erro, o necessário e principalmente; o abismo.

“Acaso vos aconselho o amor ao próximo? Antes vos aconselho a fuga do “próximo” e o amor ao remoto! Mais elevado que o amor ao próximo é o amor ao longínquo, ao que está por vir…”.
Assim Falou Zaratustra – I – Nietzsche.

1: referência a Acrilic on Canvas – Legião Urbana

Distinto (Extinto) – Nossa Senhora da Resignação .

Sentia-me distinto, confiante, inebriante em todos os atos.

Agora vejo-me despojado, em frangalhos pelos cantos, vociferando suplicas e produzindo réplicas. Um esboço de merda nenhuma é meu troféu; um belo e amargo destrato justifica o trago que trago no meu peito. Reativo ao invés de criativo, regurgito sentenças de juízo sobre o sol e a escuridão como se ambas pudessem ser mensuradas pelas suas impressões. Impressiono, imprimo e imponho valores na pele descamada que instavelmente conduz todo grito ao silêncio (E a superfície foi suficiente pra te assustar, antes mesmo de você perceber que este caso não se trata sobre “impressão”, mas sim sobre “dimensão”)

Espero em minha casa por um sussurro que devolva o ar ao meu peito, que não quebre a vontade pelo que ainda nem aconteceu. Não está em nós nem neles, está entre, na inter-relação, na interlocução, no intermédio, na forma relacional. Eu tentaria me impor, segurar tudo isso em minhas mãos e conduzir estes dilemas, como antes. O problema é que agora, o que está em jogo não é só eu e você. Há muita interferência nessa conexão desta vez pra poder se chegar a algum diagnóstico, e eu já não tenho mais forças para quebrar o molde. 

A sublimação já não me parece mais a melhor saída. E talvez o erro fosse ter instrumentalizado ela como apenas saída. Não que ela também não seja isso, mas estabelecer uma relação com ela nestes moldes gera dependência, e a arte sincera, aquela que expressa a alma, não é dependência, e sim, independência.

Sem mais choro e depreciação, sirvo-me da constatação da desgraça pra quem sabe achar graça, e juntar uns trocados aqui e acolá, fazer da lagrima um feitiço de sorte que quebre a mandinga do temor. Ah, como és bela, senhorita, sua santa, sua benção, Nossa Senhora da Resignação, que encanta os moribundos e desocupados sentados na praça, fazendo-lhes enxergar o quão tosco eles são por orgulharem-se da própria desgraça, ao prestarem atenção na tua graça. 

Ah, se tu soubesse…

Acaso e Cumplicidade Ontológica

Cumplicidade Ontológica
Cúmplicidade Ontológica

Eram por volta de 21:05, quando finalmente cheguei no Terminal do Vila Angélica, em Araucária. Eu estava resignadamente tranquilo, o barulho da chuva acalentava uma espécie de furor que atormentava meus ânimos desde semana passada. Bom para a formulação de novas ideias, mal para meu estado de espírito, essa agitação repentinamente fora consumida pelo silêncio da maioria, do itinerário cheio, do cansaço do fim de tarde, do filho dormindo no colo da mãe no banco ao meu lado. O dia havia sido consideravelmente pesado, entre as aulas de manhã e a reunião a tarde as horas de descanso poderiam ser contadas no dedo, e de alguma forma, o excesso de pessoas e a longa viajem do centro de Curitiba até Araucária me destituía o direito a qualquer reclamação, pois afinal, meu único papel em toda essa movimentação era observar a paisagem.

Logo que cheguei, me direcionei ao painel dos horários, embora soubesse já, de antemão, que teria apenas duas escolhas: haviam dois ônibus que iriam passar no meu bairro, um mais perto da minha casa, mas mais demorado, outro mais rápido no itinerário, mas mais longe de casa (Eu teria que andar por volta de três quadras nesse caso, enquanto o outro pararia em frente de casa) e ambos sairiam do terminal no mesmo horário, 21:25. Escolhi o que tinha o caminho mais rápido e direito, e que em meus planos, me daria tempo para chegar em casa pra tomar um banho e comer algo antes de dormir. Saindo do painel de horários e caminhando em direção a plataforma onde o ônibus iria parar, algo de pesado freava meus passos, algo sobrepujava e chamava a uma apreciação da chuva, das luzes que aqueciam, davam cor e textura aquelas gotas, contrastando e harmonizando meu ritmo com o da chuva. O asfalto molhado refletia formas despretensiosas, que em sua despretensiosidade de uniformidade pareciam tão belas naquele momento, tão honestas, cúmplices desse flerte que ocorria entre meus sentidos e a paisagem que os abraçavam.

O ônibus chegou, e quando entrei, reparei que havia algo de errado com uma das portas laterais: ela não respondia aos comandos do motorista e não fechava pra que pudéssemos partir. Durante esse evento muitas pessoas, possivelmente com medo do ônibus não funcionar e ser recolhido, desistiram de continuar nele. Pensei comigo que meu corpo já estava pesado de mais pra refletir sobre outro caminho, ou para correr e tentar pegar o outro ônibus, então continuei nele. Após uns 3-4 minutos o motorista conseguiu fazer a porta fechar e sair do terminal. No entanto, após percorrer boa parte do caminho, ouvi um barulho de estouro na parte de trás do ônibus, e o trajeto novamente foi interrompido. Levantei e fui perguntar a cobradora o que havia ocorrido e ela me informou que a porta havia estragado de vez, e que o motorista teria que tirar uma foto da porta e protocolar a situação, o que demoraria mais uns 10 minutos. Nesse momento, olhei para fora e simplesmente desci as escadas sem refletir se valeria a pena descer a pé, porque o caminho que eu teria de fazer até chegar em casa era separado por uma larga avenida pouco iluminada, que dividia dois bairros. No início da Avenida existe uma rotatória que demarca a divisão entre os bairros, e após alguns minutos caminhando, quando me aproximei dela, ouvi o barulho do ônibus que eu havia abandonado próximo de mim, ou seja, o motorista terminou os procedimentos de verificação do estado do ônibus e prosseguiu o caminho. Há quem pense que caminhar até em casa, após um dia cheio, seja um peso, mas quando vi o ônibus se aproximar, não relutei em virar em direção ao caminho que havia traçado para chegar a minha casa e continuar caminhando. Acaso e Cumplicidade, sim.

Algo de representativo acontecia naquele momento, traçava uma similitude entre o que eu sentia dentro de mim e contemplava fora, naquela Avenida. Uma intimidade a muito esquecida se traçava entre eu e ela, a cada passo, a cada descaso, na despretensão da chegada no horário certo, na cumplicidade com a imprevisibilidade. Sem perguntas, a urgência do agora aquecia meu corpo, deixava-me contente com o que eu era e com o que podia oferecer a aquele momento; a simples contemplação. Sem mentiras, confessávamos que desde o começo gostaríamos de nos perder um no outro, eu e a rua. Ser enquanto ser, era a forma ideal que nossas súplicas tomavam. É o que eu sou e posso ser, ficando ilustrado nessa figura mal iluminada e fragmentada de fracas impressões, do Entre a Rua e a Casa, e condensado nessa mistura de impossibilidades em meu trajeto, e ir mais rápido para a casa, escolhi a possibilidade de me fazer agente ativo e vivo do silêncio, da paz e da alegria que é pairar sobre si próprio, ao reivindicar o direito a herança do não-pertencimento, e ser herdado por ele, reconhecido e reconhecendo meu próprio pertencimento, justamente por aceitar o não-pertencimento, aceitando então, entrar em harmonia com esses traços dissimulados que são constitutivos do meu sujeito: O erro é minha sorte, e o acaso, meu cúmplice.  

Compasso

É mais apreensão do que cansaço
É mais a pressão do que o fato
Então para pra ouvir sossegado o teu compasso:
Em cada “mais um dia” vive “menos um ato”
Então chega desse papo e sai de casa gastar esse sapato
Já que pra um moleque mimado
Teu andar já tá de bom grado.

Ela – Part II

Ela – Parte II

Acho as garotas mais bonitas aquelas cujas quais, ao observar atentamente, não consigo chegar a conclusão alguma. Eu travo, entro em conflito com meus próprios preconceitos e tento assimilar algo novo, mas o outro algo anterior, que seria eu mesmo, briga pra manter os critérios anteriores, tenta resgatar e agarrar com força aquele velho ideal.

Me apaixono quando ela, seja quem for ou como for, rompe com todas as forças essa imagem “perfeita”, idealizada em minha mente, e resgata esse velho rabugento que sou, o chamando para fora de si e para dentro de sua subjetividade, bem mais real do que esse taciturno “outro eu”, redirecionando o olhar à singularidade de sua beleza, antes obscurecida pelas raízes de minhas falsas certezas, enraizadas em objetificações anacrônicas, duras e universalistas que dizem mais sobre mim do que sobre ela.

“Ela” para mim, é necessariamente a ruptura de todas essas certezas. Essa adesão a ruptura, é em si, a capacidade de amar. Toda inversão de valores implica em certa fé, e toda fé, implica no amor ao impossível, e esse impossível, pra mim, é o amor. A experiência do eterno, mesmo após o fim do eterno, não torna o eterno irreal, já que sua crença foi vivenciada. É essa beleza de que falo que é capaz de gerar a ruptura, já que chama, que torna tangível, tocável, ao nível dos sentidos, o impossível.