I – Desconforto
Há um desconforto no ar
Um sorriso, uma foice e uma flor
Tenho dado muito espaço a sua ausência
Tenho sufocado minha própria presença
O cheiro do corpo morto impregnou suas palavras
O sacrifício, o vacilo e tua condescendência deplorável
Eles saltam os olhos, e tu vens e me diz “Eu só quis ajudar”
Ver-te desesperado, suplicando piedade me faz pensar
Tu não passas de uma barata, pois só andas por esgotos
Beijando porcos, lambendo ossos, dizendo “não” aos vossos
II – Fracasso
Em frente ao grande exercito de fracassados
Só, em meio a chamas, cinzas, pecados e cigarros
“Flamejando!”, dizem eles, enquanto gritam e apontam
“Expurgando”, digo eu, enquanto a pele descasca e apodrece
Estive pensando sobre os versos, sobre os desertos, sobre os excessos
Estive olhando suas depravações, dissimulações e desejos
Meu corpo é apenas instrumento de reflexo, um mero espelho
Se te ofende olhar-me nu, doente, balbuciando e vacilando
É porque no fundo estás nu, doente, balbuciando e vacilando
Se te envergonhas ao ver-me gritando, dizendo veementemente “Sim!”
É por que querias estar aqui, afirmando também sua desgraça
Dizendo “sim” aos pecados, a embriaguez e sorrindo aos mortos.
III – Inveja
Ah! Como queria teu luxo, tuas mulheres, teu dinheiro
Meu Deus! Como pedi por tua voz, tuas roupas, teu cabelo
Queria arrancar tua face, roubá-la, colá-la em um quadro
Ver teu sangue exposto em minhas paredes
Pintar minha casa, todos os móveis, pra que em cada um deles
More um pouco de ti.
Não é que quero ver-te sofre.
Eu quero ser o seu sofrimento
Quero sentir como você sofre, por dentro de ti.
Um personagem curioso, velho por fora, criança por dentro
És um profeta dos imbecís, dos fracos, das vagabundas, dos mal amados
És inspiração para os gênios, os engenhosos, os homens de ação
E veja, como eles tem vergonha de dizer que te adoram!
No entanto, não saem de sua volta, ficam rodopiando quando você chega
Oh, grande rei dos imbecís! Suplico a ti: torne-me também um imbecíl
Uma vida pensada não vale a pena.
IV – Faz um tempo.
Faz um tempo que te amo, faz um tempo que espero por você
Mas toda vez que você chega, penso que não era com você que queria conversar
Já até estive em seus lábios, mas não em sua mente
Não quero teu corpo, quero tuas palavras
Quero ver-te perdendo tempo comigo!
Mas comigo tu não perde tempo, apenas investe, e espera lucrar
Percebi, há pouco, falando em tempo: já não queres a ti mesma há muito tempo
E decidi: não se ama quem não ama a si mesmo.
A toda espécie de mendigo já dedicou seu tempo
Talvez sejas uma verdadeira Ave Maria!
Provavelmente eu seja muito mal e sua bondade me cega
Seja incompressível, inadmissível, para mim
Ser uma mera passagem, ser mais um devoto seu
Mais um que para em sua fila e pede por um pão.
Talvez eu quisesse ser Deus, pra te castigar
Impor-lhe minhas vontades, minha doutrina
Castrar todos os teus desejos e te deixar muda, sem ventre!
Mas ah…deixe, deixe estar.
Pressinto que os ventos não estão a seu favor
Pressinto um temporal de magoas em tua direção
Vejo um mar de pragas em sua lavoura, em suas plantações
Tudo porque não cuida de si mesma, tudo porque já foi embora de ti!
E pensando bem, se não te quero bem, se quero lhe ver sofrer
Já não te amo.
V – Desculpas
Existem poucos pedidos que me ofendem
Gosto de ajudar, gosto de ser atencioso
Sentir que faço parte de uma luta
Sentir meu sangue fervendo por um inimigo que não é meu.
Alimento-me da empatia regularmente.
Ultimamente, porém, ando me sentindo seco
Eu diria até, perverso, febril
Não posso mais ajudar, não posso mais ouvir
Talvez porque tenha me ocorrido, de solavanco
O pensamento negro de que o inimigo seja muito mais amigo
E que o sofrer seja educativo, seja a chama que dá cor ao conhecimento
E que talvez me retirar de campo, por me de lado e fechar os olhos aos suplícios
Seja a maior bondade que eu possa oferecer aos outros
Sinto-me pleno, não sinto culpa por virar as costas aos queridos
Ou vocês se viram ou talvez gostem de sofrer, gostem de contar suas mentiras
“Ai, ele me machucou, ele me chamou até lá apenas pra me ver cair, pra me usar!”
É mais uma história pra contar, um drama pra encenar, uma desculpa pra subir ao palco
Só sei que de minha parte, não quero fazer mais parte deste roteiro
Não quero dirigir estas cenas horríveis que vocês tanto romantizam
Retiro-me deste teatro, e não há justificativa ou desafeto que me faça voltar
Peça-me qualquer coisa, só não me peça pra encenar
Porque não há pedido que me ofenda mais
Do que aquele que pede pra sorrir há quem nunca soube chorar.